Venenos de Deus Remédios do Diabo

- Mãe sabes uma coisa? - Diz filho. - Sabes que eu vou ter saudades da casa velha? - Então porquê filho? - Porque gostei de viver aqui sozinho contigo. - Eu também. - Lembras-te de dormirmos agarrados um ao outro? e de nos embrulharmos no sofá quentinho? - Nunca esquecerei filho. Mas sabes que ainda vais ser mais feliz na casa nova? - Eu sei. Gosto muito da casa nova. - Sabes filho, nada vai mudar para ti. Não te preocupes. - Sim. - Onde estiver a mãe tu estarás. E serás sempre protegido por mim. Sempre, seja onde for. - Então vou viver sempre contigo até ser grande. Vou ficar sempre contigo.   E ver o pai posso?Mesmo já depois de grande? - Claro que podes.   Sabes porquê? Porque o teu pai é sempre o teu pai e a tua mãe é sempre a tua mãe. - Ainda bem mãe. E sorris-te para mim aliviado e confiante. E eu fiquei a pensar que a vida é como uma bola de neve. O importante é encontrar neve húmida e uma colina bem longa. E que às vezes a justiça vem a jacto, mas quase sempre vem a cavalo. E q

Neste Natal apetece-me amar, e partilhar Virgilio Ferreira: "Vou deitar-te na eternidade, que é esse o teu lugar, é esse, é esse. E agora só tenho que amar tudo de ti, não deixar nada de fora. Porque, sabê-lo-ás? Nunca ninguém amou completamente, houve sempre uma forma de amar fragmentária, parcial. Amou-se sempre em função de uma fracção do amor como se usou um vestuário segundo a moda, desde o calção ou o penante de plumas. Vou-te amar como Deus. Não, não. Deus não sente prazer, nem movimento progressivo até ao prazer, coitado, é tão infeliz. Vou-te amar como um homem desde que os há, desde o tempo das cavernas até hoje e com um pequeno suplemento que é só meu. " Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra"

Fast living é como vivemos. Transitório e rápido. E eu, que sempre ouvi dizer que só se atiram pedras a árvores carregadas de frutos.

Quando não há assunto, ladramos como cães atrás de gatos. Discute-se por tudo e por nada, e tudo é uma questão de princípios e de convicções. Será uma fome que desconhecemos?  Defesa do território fértil da alma? Existe sempre um espinho oculto e insuportável cravado na carne. Já agora que estamos em paz, emprestas-me a tua pinça? 

Se os outros se observassem a si próprios atentamente, achar-se-iam, tal como eu, cheios de insanidade e tolice. Não posso livrar-me dos outros sem me livrar de mim mesma. Para não me desanimar, a natureza muito a propósito, orientou-me a visão para o exterior. Avanço facilmente ao sabor da corrente. Mas inverter a nossa marcha contra a corrente, rumo a nós próprios, é um penoso movimento. O mandamento na antiguidade ia contra esta opinião comum: «Olhai para dentro de vós, conhecei-vos, atende-vos a vós mesmos, reconduzi a vós próprios o vosso espírito e a vossa vontade que se consomem noutras partes. Vós vos esvaziais e desperdiçais; Concentrai-vos em vós mesmos, refreai-vos; atraiçoam-vos, dissipam-vos e roubam-vos a vós mesmos. Não vês que este mundo tem as miradas todas crivadas no interior? E os olhos abertos para se contemplar? No teu caso, tudo é vaidade, dentro e fora, mas é menor vaidade se for menos extensa. Salvo tu, ó Homem», dizia esse deus, «cada criatura primeiro

Só sabia uma coisa. Fugir. Agora mais do que em qualquer momento. Tinha que rasgar a vida que a sufocava. Precisava de correr para longe. Fugir da alma que a esganava e engolia. Só precisava de  meia dúzia de promessas saídas da boca de quem quer que fosse. Um pouco de luz, por favor. Um pouco de som. De ruído ensurdecedor. Afinal, dentro do coração ama-se á luz de vela. Hasdai, nos seus textos judaicos, já dizia que  a luz só é especialmente apreciada após a escuridão.

O que é a dúvida? O sal do espírito. Sem uma pitada de dúvida, seriamos uns ensonsos. Aristóteles dizia que a dúvida é o principio do saber. Eu sempre fui contra os sabichões com a mania que tudo sabem. Dúvida por dúvida o melhor é dizer a verdade. Verdade seja dita:  Posso duvidar da realidade de tudo, mas não da realidade da minha dúvida. Afinal de todas as coisas seguras,  a mais segura é a dúvida de sempre.

 Amor é privilégio de maduros estendidos na mais estreita cama. Que se torna a mais larga e mais relvosa. Roçando, em cada poro, o céu do corpo. É isto, o amor: o ganho não previsto. O prémio subterrâneo e coruscante. Leitura de relâmpago cifrado. Que, decifrado, nada mais existe. Valendo a pena e o preço do terrestre, salvo o minuto de ouro no relógio minúsculo, vibrando no crepúsculo. Amor é o que se aprende no limite, depois de se arquivar toda a ciência herdada,e ouvida. O Amor começa tarde. Drummond Andrade