Venenos de Deus Remédios do Diabo

Abandonava a perseverança. Esta estúpida gloriosa que me deixa perder oportunidades de ouro. Tal como diz a música o desafio é saber quando agarrá-las e quando dobrá-las.

Há ventos antigos que me sopram nos olhos, e que não domino. Parece-me que desde sempre andei, e andarei na crista das suas ondas. Entra-se noutra dimensão. Com a chuva, um movimento do meu limpa-pára brisas leva-me a outro caminho. Não  vejo nada para além disto. Euclides nem sempre teve razão ao defender que as paralelas eram constantes até ao infinito, mas é possível um modo de vida contrário onde as paralelas se tocam num além longínquo. A simbiose de duas realidades, donde caio para dentro e para fora da ilusão da convergência.

Fugi na noite passada Esmaguei-me contra a própria pele. Nesta confusão levei-te dentro de mim. Era uma reação estranha. Uma reação em cadeia. Eu estava à procura de um esconderijo. E vi a janela em que te lancei todas as pedras. Era uma estranha reação. Para alguém como tu continuares tão seguro. Eu sei que posso fingir esquecer, que tu ao longe rastejas.

De preparar coisas com carinho. Sujar as mãos nos temperos que abrem o apetite.  Sentir os aromas que fogem da minha cozinha.  Saborear coisas novas.  Gosto de cozinhar quando somos dois, para a família e para os amigos.  Gosto de ouvir elogios e gosto que me peçam as receitas.  E por mais cansada que esteja, há sempre temp o e vontade de cozinhar qualquer coisa. Afinal, são estes momentos simples que nos abrem sorrisos rasgados.

A verdade crua e dura, é que nunca nos separamos de um primeiro amor. Ficamos sempre presos no paraíso de uma história única.  Esse amor que acaba sempre mal só porque acaba. Nada o substitui, nem uma segunda história.  Nem a mentira.  Nada.  O primeiro amor que nos abre o coração e nunca mais o fecha. Depois  dele aparecem sempre novos amores. Amores mais saudáveis. Porque estão cansados, velhos, e caminham mais devagar. Numa fila indiana alinhada e cheia de regras funcionais. Amar muita gente, c omo proclamam os c ristãos, é  mesmo um embuste.  E pode ser tão involuntário como respirar.

Vem como estiveres. Como já foste. Vem no teu tempo num dia i móvel. Apressa-te. A escolha é tua.  Traz o resto. Ainda sobramos nós. Creio que ainda não nos despedimos.

"Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo.  Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto.  Nisto de duas pessoas julgarem que se amam tresloucadamente, de não terem mutuamente no corpo e no pensamento senão a imagem do outro, e daí a meia dúzia de anos não se lembrarem sequer de que tal amor existiu, cruzarem-se numa rua sem qualquer estremecimento, como dois desconhecidos.  Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim.  Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada.  Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo aquilo.  Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera."  Miguel Torga, in "Diário (1940)"

Acreditar que a vida é imutável. Afinal o destino tem mais imaginação do que nós. Tudo muda.  E mesmo sem precisar de morrer  já estamos a viver outra vida.