Venenos de Deus Remédios do Diabo

Ainda há quem inveje a coragem. Mas nem tudo o que luz é ouro. Proust já defendia que também um soldado está convencido de que tem diante de si um espaço de tempo infinitamente adiável antes que o matem. O ladrão, antes que o prendam. O homem, em geral, antes que o arrebate a morte. Esse é o amuleto que preserva os indivíduos -  não do perigo, mas do medo ao perigo; na verdade, da crença no perigo, motivo pelo qual o desafiam em certos casos. Mas na verdade não são necessariamente bravos. Deixa-nos a pensar.

Entre a fantasia e a realidade prefiro a autenticidade. Compreendo agora o discurso de um personagem de Stevenson que afirma ser um especialista do medo, porque o medo é a emoção mais intensa, mais intensa do que o amor. Melhor seria dizer: a mais autêntica. Fonte: "Cadernos de Guerra - Difel, Fevereiro de 1985"

Solidão é lava no coração.

De vez em quando o mundo acaba. Não se sabe quando nem como. A vida é apenas uma sucessão de pequenos fins. Mas sem uma mãe, um mundo não existe. Perde-se a força das origens. Como se fosse possível acontecer a uma mãe, o que acontece a qualquer pessoa. A aflição abraça sempre um filho, quando se fala em perder a mãe, seja ela que pessoa for. A minha mãe sempre disse, que há coisas que não passam dentro da cabeça. Tudo se aperta e baralhamos tudo. O amor a uma mãe, pode-se transformar numa mancha a escorrer para dentro de nós. Talvez o sofrimento tenha um significado. Como se o amor pudesse ser corrigido, voltar atrás e recomeçar.

Que viagem é essa? A culpa é dessa vontade que não te morreu com a idade. Também já não sou quem era. Talvez tenhamos um anjo da guarda atento a nós noite e dia.

As casas têm uma espécie de vida própria. Sempre acreditei nisso e os anos deram-me razão. É um planeta desconhecido que nos pode matar. Um aspirador potente de todas as histórias. Lê pensamentos. Tem uma memória estranha e elástica. Pela calada, transforma-se em sons nocturnos e rachas de parede. Não é eterna mas só ela nos eterniza.

As vezes parece-me escandaloso ter voltado a sorrir. O amor que transportamos gasta-se por onde passamos. O que se leva de um amor para o outro acaba sempre por ser muito pouco. Os corpos viciam-se em corpos e quando se separam é por rasgões. Faz-se tudo de forma tão naturalmente descuidada, que só mais tarde vimos o peso do chumbo que nos pesa e que até nos pode afundar. É um escândalo voltar a sorrir para tudo o que me cerca. É a vida a fugir de qualquer maneira, ou Deus a fazer justiça.

Que a  tua cegueira me conduza na minha escuridão.

Somos animais irracionais. Já o dizia Fernando Pessoa. A única diferença é que os outros animais têm uma irracionalidade simples e nós uma complexa. Não sabemos mais que os outros animais, sabemos bem menos. Os animais sabem o que precisam saber e nós não.   Paul Valéry esclarece todas as dúvidas: "O que é simples é sempre falso e o que o não é, não serve para nada.