Venenos de Deus Remédios do Diabo

A vida vincou-te os traços do teu pai no rosto. Isto da genética não falha. E se isso não fosse triste teria alguma graça. Sabendo que a vida tem um prazo de validade apertado só te podia aconselhar: Até lá filho, viver viver. Apenas isso.

O irreversível. Em que nenhum mal, ou defeito, existe nas coisas senão a evidência impiedosa de elas serem assim. Mas nada existirá mais triste do que assistirmos a essa forma de o tempo nos dizer que o que não aconteceu jamais poderá vir a acontecer, foi apenas por não ter sido. Talvez Eduardo Prado Coelho tenha razão: O amor poderá vir, deslizando lentamente, para dentro do amor, como se o amor tivesse corredores, portas, vozes do outro lado da parede, chuva lá fora, mesas com comida, néons, luzes violentas, imagens calcinadas, escadas, respirações suspensas. Como se o amor fosse o dentro de um dentro que apenas se torna visível na superfície muda das coisas, na beleza siderante dos vestidos, na brancura austera das camisas, nas unhas geladas, no fumo dos cigarros, na melancolia absorta das vozes. E este dentro tivesse a cadência, passo a passo, de uma repetição infinita, a dimensão espectral de um não-acontecer que todos os dias acontece, a amargura de uma distância entre aqueles qu

Que nada nos doa. Sem fugas. Sem enganos. O amor não convence. Quando morre é cruel. Morre de morte lenta sem mais nem menos, sem piedade, sem despedida. Saturno perdeu-se numa casa errada. E tudo se consome para lá da compreensão das estrelas. O céu com cheias de vento a levar e a trazer o que não se entende. E continuo a ser quem fui. Cada vez mais aqui. Nada como sermos sozinhos como as coisas sós.

Para não se confessar, até porque não era católica, ocorreu-lhe escrever uma carta parecida com esta. E enviou-a embrulhada em lágrimas: "Escrevo-te hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar contigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-te. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga. Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou uma criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. No jardim que entrevejo pelas janelas calad

O mundo não me importa.

Esse teu silêncio deixou-me de mãos vazias. Há quem lhe chame omissão. Será que o silêncio é, como diz o personagem de Shakespeare em Tanto Barulho por Nada, a única forma de exprimir a felicidade? pois pequena seria a nossa felicidade se a pudéssemos descrever em palavras? Ou será que o silêncio, como defendeu George Steiner ao falar do holocausto, é antes a única forma de exprimir o que é tão terrível que não é susceptível de ser revelado através das palavras? Talvez o silêncio seja o teu último recurso. Porque não encontras palavras que cheguem. E eu também não.

Se me encontro vou ouvir das boas.

- Vai á tua vida. - E tu queres que eu vá á minha vida? - Não. - Então, mexe-te, temos muito que andar.

A todos os meus amigos. Revejam-se aqui bem perto das palavras de Oscar Wilde: "Escolho os meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Têm que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta. Não quero só o ombro e o colo, quero também  a sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade a sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos a

Eu sei que nos adaptamos a tudo. Mas não deviamos. A morar numa casa sem vista. E porque não tem vista,  deixamos de olhar lá para fora.  E porque não se olha para fora, nem vale a pena abrir os cortinados.  E assim se esquece o sol, a brisa, a vida . Ouvimos falar das cheias, dos terramotos e das guerras.  E aceitando isto, aceitamos os mortos e que haja números para os mortos. Habituamo-nos a esperar o dia inteiro e não ouvir o telefone tocar.  A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.  A ser instigados, conduzidos, e desnorteados. Ao choque que os olhos levam da luz natural. Habituamo-nos a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas para criarmos anticorpos. Afasta-se uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Poupa-se o peito. Deixamo-nos  ir para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto habituar, se perde de si mesma. No meio disto tudo já nem sei o que é bom ou mau. Luis de Camões já dizia:. "Os bons vi sempre passar no mun

O corredor está cheio de sonhos difíceis. Ainda podes tropeçar no amontoado de pensamentos por arrumar. Não conseguirás ver para lá dos amores com defeito. Há portas que não vale a pena abrir. E serás feliz assim, ainda que isso não seja ser feliz.

Esta podia ser a tua história. Nada como ser a primeira.

Talvez até seja melhor assim. Evitar o perigo. Nietzsche  dizia que desenvolver todas as faculdades significa desenvolver a anarquia.  A  má vontade tudo distorce. Há que andar com mentiras na mão, com prudência e cautela. Aristóteles tinha toda a razão quando disse um dia: «Ó amigos meus, não há nenhum amigo!» Talvez seja esta a minha obrigação para com Deus. Excesso de calor e muito sangue no coração.