Carta


Para não se confessar, até porque não era católica, ocorreu-lhe escrever uma carta parecida com esta.
E enviou-a embrulhada em lágrimas:
"Escrevo-te hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar contigo.
Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-te.
Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo.
O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro.
Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno.
A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento.
Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça.
Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou uma criança triste em quem a vida bateu.
Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar.
No jardim que entrevejo pelas janelas caladas do meu sequestro, atiraram com todos os balouços para cima dos ramos de onde pendem;
estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugida pode, na minha imaginacão, ter balouços para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento.
Como à veladora do "Marinheiro" ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar.
Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios.
Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se."


Fernando Pessoa

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